Consciência alimentar como ferramenta de escolha
Sobretaxar alimentos e bebidas não melhora a alimentação e a saúde da população, mas sim a educação nutricional
MÁRCIA TERRA, MEMBRO DA DIRETORIA DA SBAN
Ao discutirmos como melhorar os padrões de alimentação de uma população, uma das primeiras ideias que vêm à cabeça é educação nutricional. Antes de tudo, quando falamos em ensinar as pessoas a comer, precisamos primeiro estar de acordo com o que significa comer corretamente. A regra básica da boa alimentação é variedade e moderação, mas educação nutricional vai muito além. O papel da educação nutricional é possibilitar a autonomia nas escolhas alimentares, fornecendo uma compreensão abrangente de todos os alimentos dentro do contexto de uma dieta balanceada. Trata-se de incluir, não excluir, e reconhecer as necessidades únicas e variadas de cada indivíduo. Quando as pessoas são capacitadas com conhecimentos e habilidades, elas podem navegar pelo cenário diversificado de escolhas alimentares com confiança e prazer, levando a melhores resultados de saúde e a um relacionamento mais positivo com os alimentos.
Entretanto, existem setores da sociedade que acreditam que sobretaxar determinados alimentos é uma maneira de “obrigar” as pessoas a fazerem escolhas mais saudáveis no prato. É, inclusive, um dos possíveis desdobramentos da Reforma Tributária que foi aprovada por nossos deputados e senadores no final de 2023. Ao longo dos meus 38 anos de carreira em Nutrição, posso afirmar com convicção que esse tipo de regulamentação não somente é ineficaz na busca de uma alimentação saudável, como interfere no direito de escolha de cada pessoa, afinal o que comemos faz parte da nossa cultura e história.
Atualmente vivemos uma guerra de narrativas, onde a verdade vem perdendo seu valor para factoides e opiniões rasas. A alimentação passou a ser defendida por bandeiras políticas, que pregam que existem alimentos bons ou ruins, dissociando a alimentação da sua evolução social e cultural. Nenhum alimento de forma isolada pode ser capaz de prejudicar o nível de saúde de um indivíduo. Como exemplo disso, podemos observar os dados da POF sobre o consumo de refrigerantes açucarados que vem caindo ano a ano, sendo que, os índices de sobrepeso e obesidade só vêm aumentando.
É imprescindível neste momento, quando há o risco real de os alimentos sofrerem uma tributação ainda maior da atual, em um país onde grande parte da população já sofre para se alimentar, criarmos um pensamento crítico, aberto e esclarecedor sobre o assunto. Muitas regiões do mundo, como México e Chile, adotaram a prática da tributação e pouco resultado se vê na melhora da qualidade da saúde das pessoas. Muitos acadêmicos defendem esse projeto, colocando os alimentos industrializados e as bebidas açucaradas como os únicos vilões do sobrepeso e da obesidade. No entanto, um trabalho feito por economistas da FGV em abril de 2023 sobre obesidade e consumo das famílias brasileiras concluiu que fatores como faixa etária, renda e inatividade física são os que mais se mostraram estatisticamente significantes para a obesidade. Portanto, fica evidente que a verdadeira transformação está atrelada a uma educação nutricional eficaz, aliada a políticas que estimulem a prática de atividade física.
Escolhas alimentares são decisões que indivíduos e famílias fazem sobre o que e como comer. Elas são influenciadas por fatores conscientes e inconscientes e dependem da disponibilidade e acessibilidade dos alimentos, principalmente para pessoas de baixa e média renda. Mesmo com limitações, as preferências pessoais guiam como as pessoas comem. Fatores como custo, sabor, conveniência e saúde são importantes, mas são os valores culturais mais profundos que realmente definem como as pessoas decidem sobre sua alimentação. Esses valores incluem necessidades biológicas, interações sociais e a sobrevivência da civilização e são universais em todas as sociedades.
A boa nutrição é uma dança complexa entre contexto, conhecimento, comportamento, preferências pessoais, estilo de vida e circunstâncias externas. É um processo dinâmico que exige mais do que apenas entender a ciência dos alimentos. A verdadeira mudança na dieta é um desafio multidisciplinar que deve considerar toda a experiência e realidade do indivíduo – emocional, social, cultural, financeira, entre outros fatores.
A educação nutricional não deve passar por proibições, restrições ou imposições de barreiras ao acesso a determinados alimentos e bebidas. Nem pela negação do impacto que as mudanças no estilo de vida, nas estruturas familiares, nas formas de trabalho e na evolução tecnológica têm nas dinâmicas alimentares das pessoas, especialmente nos grandes centros urbanos. Reconhecer essa complexidade é o primeiro passo para o desenvolvimento de estratégias mais eficazes que ajudem não apenas a conhecer, mas também a aplicar os princípios da boa nutrição em suas vidas.
Com mais opções alimentares disponíveis, as pessoas têm mais autonomia para escolher alimentos que correspondem aos seus valores e objetivos. Políticas públicas e programas de nutrição eficazes precisam entender como os valores culturais influenciam as escolhas alimentares. E entender como esses valores podem ajudar a promover dietas mais saudáveis e sustentáveis. Justamente por isso, precisamos observar com cautela as propostas da reforma tributária que estão sendo debatidas e podem trazer cobranças extras para determinados alimentos e bebidas, limitando a liberdade de escolha de milhões de brasileiros. Impor limitações ao acesso desses alimentos e bebidas ignora a autonomia alimentar das pessoas. Os brasileiros têm o direito de tomar decisões sobre quais produtos consumir sem que isso afete seu paladar e orçamento, afinal a alimentação é parte da nossa identidade.